Paulo Silva no Intelijur 

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Artigo baseado na palestra: “Transformação digital: não é tecnologia, é cultura.” 

No dia 05 de novembro de 2024, aqui em São Paulo, ocorreu mais um evento da InteliJur – Inteligência Jurídica sobre Controladoria Jurídica e Legal Operations, destinado a profissionais do mercado jurídico atuantes ou não nestas áreas. Nesta edição de 2024, que além do público presente no Teatro do Sheraton World Trade Center, contou com a participação de um público on-line, foram apresentados cases sobre o tema, além de painéis que debatiam quais os caminhos da gestão jurídica no Brasil e como a estamos vivenciando nos tempos atuais. 

TRANSFORMAÇÃO DIGITAL NÃO É TECNOLOGIA, É CULTURA OU “DIGITAL X DIGITALIZADO” 

Representando a eLaw, apresentei um painel que se propôs a debater aspectos relacionados a transformação digital no meio jurídico, sob o título “Transformação digital: não é tecnologia, é cultura”. A partir de uma “provocação” quanto a ideia de que o meio jurídico é “DIGITALIZADO” e não “DIGITAL”, o painel tinha por propósito debater o quanto ainda tentamos aplicar uma lógica “analógica” por assim dizer, transferindo para o ambiente digital as mesmas práticas do mundo físico, sem nos aproveitarmos de todo o potencial que a tecnologia nos oferece. 

Ainda que muitas das nossas práticas atuais sejam “digitalizadas”, atuamos como se no ambiente físico estivéssemos. Não repensamos o peticionamento a partir de uma lógica digital, tão pouco a audiência ou o cumprimento de uma obrigação. Reproduzimos no ambiente digital os mesmos “passo a passo” do ambiente físico.  

Comparativamente, se o Uber aplicasse a mesma lógica que aplicamos ao pensar nos processos e ferramentas utilizados no mundo jurídico, sua interface seria uma página on-line com uma listagem de telefones dos prestadores, subdivididos por regiões, para os quais, após uma seleção qualquer, ligaríamos e negociaríamos o valor da corrida, até encontrar um motorista que a aceitasse. 

Ou seja, seria um serviço digitalizado – através de um cadastro e um compilado de dados – e não digital, que combina geolocalização, proximidade, pagamento por meios diversos, ranqueamento e outros serviços adicionais. 

Para que um produto ou prática seja, de fato, digital, precisamos repensar e redesenhar todo o seu processo considerando a experiência do cliente e como ele acessará este produto/serviço, utilizando a tecnologia disponível. Neste sentido, se bem desenhado e com uso de tecnologias como RPA e IA, uma solicitação e análise de um contrato pode ser totalmente processada pelo whatsapp ou outro aplicativo de comunicação, sem que o jurídico abra mão da rastreabilidade e acompanhamento. 

COERÊNCIA É CHAVE 

A coerência é essencial neste processo. Se a forma de acessar o serviço se dá, por exemplo, por meio de e-mail (e não se está avaliando aqui se este canal é o melhor), todas as interações e a entrega final devem seguir por aí, não devendo se impor ao usuário do serviço que saia do ambiente quando surge um problema. 

Como exemplo de uma possível incoerência “digital”, imagine se, ao adquirir um produto em uma plataforma de e-commerce via “app” em seu celular, ao ter algum problema com a entrega, fosse obrigado a enviar um telegrama…não faz sentido. Pensemos agora em nossos serviços jurídicos ou mesmo em todo o nosso ecossistema e nos lembremos de quantas vezes vivenciamos esta incoerência em nossos processos e com nossas ferramentas. 

NÃO É SÓ COMPRAR TECNOLOGIA 

E aqui reside um ponto crucial: não se trata, apenas, de comprar tecnologia e aplicá-las nos seus processos analógicos, mas sim repensar os processos e usar a tecnologia como alavanca para um entrega e experiência melhores. 

Se fizermos uma analogia com as obras de arte, podemos observar as obras de Van Gogh ou de Da Vinci, por exemplo. Obras mundialmente conhecidas e extremamente renomadas, cujos exemplares originais estão alocados em museus específicos e cuja visitação é restrita por diversos motivos. Hoje, graças a um conjunto de tecnologias e devices, é possível ter estas obras projetadas em televisores, celulares ou na parede de sua casa. Se a experiência buscada é a de proximidade não com a obra em si, mas com tudo que ela evoca, estes produtos digitais permitem esta experiência. Fica a pergunta então: será que estamos combinando os melhores processos e as tecnologias mais adequadas para uma melhor experiência de quem se utiliza dos serviços jurídicos, seja na confecção de um contrato, seja na resolução de uma disputa?  

Estamos simplesmente digitalizando aquilo que fazemos ou estamos de fato inteirados da perspectiva e do potencial do que o meio digital, com uso de tecnologias combinadas, oferece? 

Responder a estas perguntas é o que nos permitirá sermos cada vez menos operacionais e cada vez mais táticos e transformacionais no meio jurídico, conforme podemos deduzir da imagem abaixo: 

O JURÍDICO BUSINESS PARTNER 

Iniciar um movimento de transformação digital também traz um grande desafio cultural para além de repensar os processos sob outra perspectiva – traz a necessidade de que o jurídico interno ou escritório seja um “Business Partner” e isso confronta, sob certa medida, como entendemos o papel destes agentes. 

Aprendemos que o papel do jurídico interno ou escritório é “mitigar riscos” e isso sob certa medida confronta a ideia do Business Partner, que, ao final do dia, deve tomar e compartilhar do risco. O que esperam de nós – jurídicos corporativos e escritórios – não é mais apenas mitigar riscos, mas, na realidade, assumir riscos junto com as outras áreas e com o cliente.  

Se antes focávamos no problema/demanda, por mais óbvio e “batido” que esta frase pareça, fato é que é só seremos transformacionais se focarmos no cliente – e para tanto a transformação digital é essencial. 

O PAPEL DAS EMPRESAS DE TECNOLOGIA NESTA TRANSFORMAÇÃO 

Neste processo transformacional, as empresas que oferecem tecnologia (conceito aqui, aplicado de maneira ampla) também precisam repensar seu papel. 

Mais do que simplesmente oferecer suas soluções e ferramentas, precisam passar a atuar de modo que “entreguem” a seus clientes: a) eficiência – executar as operações jurídicas de maneira correta, utilizando-se dos melhores recursos disponíveis; b) integrações – não só com as demais ferramentas utilizadas pelo cliente , mas com os processos do cliente que estão relacionados com o jurídico, melhorando a comunicação e cooperação entre as áreas; c) capabilities – auxiliar na criação de competências tecnológicas e de gestão das equipes atendidas pela empresa, de modo a permitir que os profissionais de legal operations e os advogados não aprendam a lidar com uma ou outra tecnologia específica, mas que saibam trabalhar com a inovação o ambiente jurídico. 

Aliás, no que se refere a estas competência, é importante destacar a pesquisa elaborada pelo CEPI da Fundação Getulio Vargas intitulada “Formando a advocacia do presente e do futuro: habilidades e perspectivas de atuação: destaques e tendências”  de 2023, que mapeou, entre outros aspectos, 69 habilidades específicas, das quais apenas 13 foram classificadas nos eixo de “competências jurídicas”; as demais 56 estão classificas em outros 3 eixos: competências de gestão, competências tecnológicas e competências socioemocionais. 

Neste sentido, os departamentos jurídicos que objetivam ser transformacionais buscarão parceiros de negócio e fornecedores que possam realizar estas entregas de maneira consistente. Notem: já não se trata mais de entregar uma ferramenta, tecnologia ou serviço, mas sim, um ecossistema de soluções coeso que, na medida de necessidade, permita um desenvolvimento de pessoas, processos e tecnologias.  

PENSANDO EM UM CAMINHO PARA A TRANSFORMAÇÃO DIGITAL 

Por certo que este processo transformacional não pode ser feito sem algum tipo de método. Ocorre que quando pensamos em um caminho para iniciar este processo transformacional, por vezes nos esquecemos que os passos iniciais exigem muito mais “a vontade de capitanear o processo” do que conhecimentos específicos e aprofundados sobre determinada metodologia. Vejam: as metodologias são importantes e funcionam como um guia pelo caminho, mas vontade de trilhar este caminho não se encontra em nenhum guia. 

Aqui, para nos ajudar a pensar neste caminho, propomos algumas etapas que envolvem: 

  • Avaliação do contexto e cenário onde a empresa atua e quais os objetivos estratégicos almejados por ela. A partir deste conhecimento é possível planejar quais são os objetivos estratégicos do departamento jurídico e como eles se inserem em uma perspectiva digital; 
  • Revisar os processos, avaliando o quanto estão aderentes a esta perspectiva, buscando “fugir da armadilha” de apenas “digitalizar” o processo. Lembremo-nos que a experiência dos nossos clientes é essencial; 
  • Desenvolver as competências do time necessárias a manejar esta transformação. Este desenvolvimento pode passar tanto por “treinar” a equipe quanto agregar novos perfis a ela; outra forma é entender quais competências podem ser contratadas junto a parceiros e fornecedores; 
  • Implementar as tecnologias de maneira estratégica e não mais apenas com a ideia de “resolver uma dor”; 
  • Gerir a mudança de maneira ativa, por meio de indicadores claros, de modo a verificar a aderência aos processos e ferramentas que estão sendo implementados; 
  • Monitorar os ganhos obtidos e os desempenhos aquém do esperado, estabelecendo o ciclo de melhoria contínua (PDCA). 

Este caminho só será possível de ser trilhado com o investimento nos profissionais, nos seres humanos que irão executar os processos, de forma dedicada. E, para isto, é necessário investir o nosso ativo mais valioso, o tempo, as horas de voo. São as pessoas, enfim, que repensarão os projetos, metas e táticas à luz das tecnologias. 

Por fim, talvez ironicamente, a transformação digital nos fará voltar a um passado em que o profissional do Direito era um grande “leitor e explicador da realidade”, atuando como um conselheiro quantos ao desafios que se impunham.  

Vivemos tempos que cada vez mais testarão nossa capacidade humana de criar. 

Seguimos juntos! 

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